Afetividades das mulheres negras é tema do documentário 'Sobre Nós’ que estreia neste domingo no Globoplay

Divulgação Globo/Marina Alves

Comemorado em 25 de julho, o Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha ganha projeto especial no Globoplay e GNT. A partir das experiências de vida de 11 brasileiras, de diversas origens, gerações, classes e orientação sexual, 'Sobre Nós', dirigido por Naína de Paula, se debruça sobre a afetividade das mulheres negras. O documentário estreia neste domingo, dia 25, no Globoplay e também no GNT, às 22h30. “Sobre Nós” entrelaça os depoimentos autobiográficos da escritora Conceição Evaristo, da atriz, cantora e compositora Jéssica Ellen, da cantora e compositora Luedji Luna, da atriz, cantora e escritora Elisa Lucinda, da cantora e compositora MC Carol, da escritora, arquiteta e urbanista Joice Berth, da jornalista Rosane Borges, da filósofa Katiúscia Ribeiro, da socióloga Bruna Pereira, daartista plástica Amanda Cursino eda artista contemporânea e DJ Marta Supernova, com performances visuais da própria Marta e de Madara Luiza, assistente de direção.   
 
A iniciativa do projeto nasceu da experiência da própria Naína de Paula como mulher negra no audiovisual. “O racismo nos fez acreditar por muito tempo que as nossas vivências não eram importantes, e precisamos recuperar o que nos foi roubado da nossa própria história. O filme se propõe a fazer esse resgate. Como estamos falando de afetos, preterimentos, e nem sempre damos conta de expressar o que sentimos, usei o simbolismo para retratar algumas situações”, revela Naína.   
 
Naína explica ainda por que em nenhum momento o termo ‘solidão da mulher negra’ é citado no filme. “Foi uma escolha não utilizá-lo. Pelas pesquisas que fiz, ele passa uma ideia errada do que acontece. Eu optei muito por preterimento porque o preterimento acontece sempre. É óbvio que existe a solidão da mulher negra, mas às vezes, você tem família, você tem amigos, você tem até um relacionamento, e o preterimento continua acontecendo. Ainda que as relações existam, elas acontecem de uma maneira diferente por você ser uma mulher negra. Então quis abordar a diferença de tratamento que vem desse processo de desumanização do que é uma mulher negra, que é sempre forte, a que dá o colo, mas nunca o recebe. É muito mais isso do que solidão”, elucida a diretora, que buscou sair de um enfoque tradicional: “Também queria fugir do lugar heteronormativo e de que as relações afetuosas acontecem só quando envolvem questões amorosas e sexuais. O preterimento acontece, às vezes, numa relação com os pais, de amizade, no trabalho. É sobre como o mundo te enxerga de modo geral e quais as consequências desse olhar do outro para nossa existência”.   
     
A construção do amor de si, por si, entre si que pode ser vista no documentário também se deu nos bastidores. Durante as entrevistas, o cuidado era para que todas as pessoas no set de filmagem fossem mulheres negras, justamente para criar um ambiente repleto de dororidade, que é a empatia que nasce entre elas a partir de uma dor comum. “Eram mulheres negras no set: direção, assistência de direção, direção de fotografia, câmera e operação de áudio. Isso fez toda a diferença para que as entrevistadas se sentissem à vontade para falar de suas questões, e tudo que era dito gerava muita conversa e reflexão entre nós depois”, conta a diretora.  O resultado é um filme construído com o amor de mulheres negras, sobre e para o amor de mulheres negras. 
  
Com 60 minutos de duração, o documentário foi filmado em três locações diferentes, que conversam bastante entre si. São espaços em construção, inacabados, para mostrar que o preterimento afetivo da mulher negra é um assunto que ainda requer muita construção e debate. No Rio de Janeiro, também há locações na chamada “Pequena África” (Gamboa, Pedra do Sal, Cais do Valongo), região central da cidade e primeira morada dos africanos que chegaram ao Brasil. “A ideia foi fazer um resgate ancestral, trazendo a possibilidade de um recomeço, para que possamos ressignificar as nossas histórias, mas sem esquecer de onde viemos e quem nos trouxe até aqui”, explica Naína de Paula.   
 
‘Sobre Nós’ é criado e dirigido por Naína de Paula e tem direção executiva de Rafael Dragaud.   
 
Quem fala e o que falam em 'Sobre Nós’   
 
Conceição Evaristo – Escritora nascida em Belo Horizonte (MG), de origem humilde, é a segunda de nove irmãos, sendo a primeira de sua casa a conseguir um diploma universitário. Ajudava sua mãe e sua tia com lavagem de roupas e as entregas, enquanto estudava. Nos anos 1970, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde passou em um concurso, começando a escrever apenas na década de 1990. Mestra em Literatura Brasileira e doutora em Literatura Comparada, é hoje grande expoente da literatura contemporânea, cuja matéria-prima literária é a vivência das mulheres negras – suas principais protagonistas. É a autora de obras como ‘Ponciá Vivêncio’, ‘Olhos D’Agua’, entre outros. “Eu acho que a gente tem que pensar na diversidade das mulheres negras, nessas mulheres que conseguiram estudar e saíram da linha de pobreza. Nós temos uma outra história. Mas a grande parte das mulheres negras ainda não tem nem tempo de pensar nas subjetividades delas, nas suas dores. A luta pela sobrevivência nos embrutece. Ela não nos deixa pensar nas nossas carências”.   
   
Elisa Lucinda – Poetisa, jornalista, cantora, escritora e atriz, nascida em Cariacica (ES). De família de classe média, filha de professor, interessou-se pela escrita desde cedo. Fez parte de filmes e espetáculos premiados e hoje dirige a Casa Poema, instituição socioeducativa cujo método capacita vários profissionais, desenvolvendo sua capacidade de expressão e sua formação cidadã por meio da poesia falada. “Uma das coisas mais dolorosas e violentas e que não está nas estatísticas, na questão do preconceito étnico, é esse olhar para a gente, para o povo negro, como se fosse de segunda categoria. Todos os pretos entendem esse olhar como ‘O que é que você está fazendo aqui?’. E não é uma paranoia. E realmente é uma pergunta pertinente numa sociedade organizada no colonialismo, na supremacia branca como gestora única do mundo. Esse salão nobre não é pra você...”.   
   
Jéssica Ellen – Atriz, cantora, compositora e dançarina, é nascida e criada na favela da Rocinha (RJ). Estreou na TV em ‘Malhação’, e atuou em obras como ‘Totalmente Demais’, ‘Justiça’, ‘Assédio’, e mais recentemente, em ‘Amor de Mãe’. Jéssica consegue traduzir em seu discurso e em suas músicas sua ancestralidade e as dificuldades de ser uma mulher negra na nossa sociedade e também no meio artístico. “Eu estou revisitando a história da minha mãe, da minha avó. Essas mulheres conseguiram porque elas vão anestesiando a dor e não vão olhando para elas. Parou. Vamos olhar agora. Quando você olha, você encara o problema de frente. Tudo bem. O que que a gente pode criar novo agora? Honrar essa história e é um desafio. Eu tenho que dar conta porque nossos ancestrais deram conta de coisas piores? Calma aí, porque que a gente não pode só descansar. Isso também foi tirado da gente. Descanso, que é uma coisa básica”.   
   
Luedji Luna – Cantora e compositora, nascida em Salvador (BA). Ganhou destaque na música por falar da afetividade das mulheres negras em suas canções. É apontada como um dos destaques da nova MPB. “Eu tive todas as condições materiais e afetivas para ter uma autoestima superconsolidada. Eu tive bonecas negras, Barbie negra, uma família negra que exaltava minha beleza. Nunca alisei meu cabelo, nunca ouvi dizer que meu cabelo era ruim, mas, fora de casa, e também na TV, nas revistas, nos filmes, tinha toda uma construção de imaginário que apagava tudo aquilo que era aprendido dentro de casa”.   
   
MC Carol – Carol Bandida, ou Carolina Lourenço, nascida em Niterói (RJ), é cantora, MC de funk e ativista brasileira. Começou a cantar aos 14 anos no Morro do Preventório, em Niterói, e se tornou notória ao unir em suas canções questões sociais e reflexões sobre gênero, raça e padrões estéticos. “Eu persisti muito para estar sentada aqui, viva. A cada pedrada que eu levava, eu ria. Não é possível que não vai melhorar. Não é possível tanta coisa acontecer com uma pessoa só. E eu pensava: ‘vou levantar e vou à luta de novo’. Nem todos têm isso, porque a gente não tem estrutura familiar, a gente não tem estrutura psicológica legal. Eu não lembro de nenhuma fase da minha vida em que eu pude relaxar. Eu não posso relaxar, em nada. Tem uma agressividade muito grande dentro de mim. É muita coisa. É uma vida toda ganhando porrada. Entende? De todos os sentidos falando, e não tem como curar isso do dia para a noite”.   
   
Joice Berth – Escritora, feminista negra, arquiteta e urbanista, nascida em São Paulo (SP). Autora de diversos artigos sobre preterimento afetivo racial e do livro ‘O que é Empoderamento?’, atualmente, escreve para o site da revistaElle. Pesquisa também sobre o direito à cidade, com recorte de gênero e raça. “O preterimento afetivo das mulheres negras é um dos assuntos centrais da pauta racial, e ao mesmo tempo, que é central, é um tabu e não é discutido de maneira honesta. (...) Até pouco tempo a gente tinha nas paradas de sucesso ‘Nega do cabelo duro que não gosta de pentear’. O professor já falou para mim na sala de aula - e eu nem estava com cabelo natural, estava com cabelo alisado, mas fazia um ‘bigudinho’ para ele ficar crespo, porque eu nunca gostei do cabelo lisão – e o professor vira e fala assim ‘Você não penteia o cabelo?’ Isso é o estigma da estética da mulher negra”.   
   
Katiúscia Ribeiro – Professora, filósofa e doutoranda em Filosofia Africana, nascida em Porto Alegre (RS), sua pesquisa tem por comprometimento a reintegração do legado africano à comunidade, através da reconexão dos pensamentos africanos na filosofia. “Eu sempre fui objetificada. Eu nunca fui lida como uma mulher preta intelectual. Eu lembro que eu fui dar uma conferência nos Estados Unidos. E as mulheres estavam me perguntando se eu estava indo trabalhar de faxina. Não é um demérito trabalhar de faxina, mas é um lugar social que somente as mulheres negras podem estar. E as mulheres negras podem estar em todos os lugares”.   
   
Rosane Borges – Jornalista, doutora em Ciências da Comunicação, professora colaboradora do Colabor (ECA-USP), pesquisadora na área de comunicação, imaginários, política contemporânea, relações raciais e de gênero, conselheira de honra do Coletivo Reinventando a Educação, integrante do grupo Estética e vanguarda do CTR (ECA-USP), articulista da revista Carta Capital, do blog da Editora Boitempo. Autora de diversos livros, entre eles: ‘Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro’ (2004) e ‘Mídia e racismo’ (2012). “O Brasil conseguiu subverter o mito de Narciso porque a gente acha feio exatamente o que é espelho. Uma menina negra que desde a sua mais tenra idade é associada com imagens negativas, redutoras e estereotipantes, claro que ela não vai querer se ver nessa imagem. (...) Ela não quer ser associada ao cabelo ruim, aos lábios grossos, como sinônimo de feio. Isso é trágico. Isso vai ferindo de morte”.   
   
Bruna Pereira – Doutora em Sociologia e graduada em Relações Internacionais, atualmente, é professora substituta do Departamento de Sociologia da UnB. É autora do livro ‘Tramas e dramas de gênero e de cor: a violência doméstica contra mulheres negras’ (Brado Negro, 2016). Foipesquisadora visitante no Departamento de EstudosAfroamericanos e da Diáspora Africana da Universidade daCalifórnia, Berkeley (2017-2018). “A gente começa com o racismo científico no século XIX, com essa ideia de escalas de beleza, que obviamente trazia grupo branco como o mais belo, e o último lugar da escala cabia aos negros, que seriam feios e desproporcionais. Essa forma de pensar existe ainda hoje”.   
   
Amanda Cursino – Ceramista, designer e cenógrafa, nascida na Taquara (RJ), fruto de uma relação inter-racial. Amanda usa o seu trabalho de forma política para discutir as questões raciais sobre ser uma pessoa negra mestiça e como isso influencia nas suas experiências em sociedade. “Quando eu era mais nova, e eu comecei a me relacionar, sempre pensava que tudo seria mais fácil para mim se eu fosse uma pessoa branca. Era uma coisa que no fundo eu sabia, mas a gente vai deixando, você não vai se conectando, porque é um momento que você acessa e tem muita dor”.   
   
Marta Supernova – Artista visual e sonora, DJ, produtora musical e percussionista, pensa a produção de uma arte anormal (não-normativa) que estimula a presença e a confluência de grupos cujas existências desencaixam espaços e linguagens. Estuda e vivencia comunidades negrodescendentes,afroameríndias, ameafricanas, afrolatinas e LGBTQIAP+. “A gente fazia exercícios de autoestima quando era pequena. Minha mãe me botava na frente do espelho. E pedia que eu falasse o que gostaria de ouvir, que as outras pessoas me falassem. Ela ficava do lado e eu me olhava e falava. Quando eu sofria algum tipo de discriminação, eu sentava, a gente conversava e ela me perguntava: ‘Você acha ruim ser você?’, ‘Você acha ruim ser negra?’, ‘Você acha ruim ser mulher?’. E, às vezes, eu podia falar que acho porque eu não queria estar nesse lugar de estar sendo agredida por ser quem eu sou”. 

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